Numa forma de controle social, o homem cria o estereótipo, atitude que na verdade serve apenas para reforçar e justificar um determinado tipo de preconceito. A escravidão brasileira é responsável pela criação do estereótipo étnico, que vitimou o negro a viver no subsolo da condição social e que estabelece a distância social entre o senhor e o escravo fortalecendo contrastes entre o homem branco decente, culto, civilizado, e o negro bárbaro, irracional.
É claro que o estereótipo não está necessariamente ligado à etnia. Entretanto, a questão da raça e da cor representa o ponto crucial para a verificação deste componente no romance O Mulato, de Aluísio Azevedo. Através da leitura, será possível a um leitor do século XXI entender a trajetória dolorosa da existência do negro brasileiro tantas vezes vítima da segregação e de sentimentos de superioridade estabelecidos pelo branco europeu; o negro que até certa época não era estatisticamente considerado sequer como homem.
A cor do homem negro é, sem dúvida, o seu pior defeito e que dá à sociedade intolerante a chance de criar outros estereótipos populares. Assim, nascem da boca do povo expressões “negro de alma branca”,“casar com branca pra limpar a raça”, “mulato bem clarinho”, e que passeiam pela cultura popular numa forma de dissimular julgamentos de aversão à raça responsável pela formação étnica do povo brasileiro. A fusão do estereótipo com a realidade faz surgir, ainda, outros elementos, dessa vez, refletindo o ódio racial no Brasil. O preconceito estabelece, assim, o modo mais maledicente e indigno de intolerância racial.
O poeta mineiro e negro, Adão Ventura, cuja poesia “advém do sentimento da cor da pele”, mostra que para aparecer sócio-economicamente como indivíduo, o negro teve que incorporar valores brancos, que vão resguardá-lo da violência e do anonimato: o preto de alma branca e sua cor camaleão [...].
Antes da presença do Naturalismo como manifestação literária, a temática da cor e da raça chegava aos escritos sem a obrigação da polêmica. O Naturalismo trouxe renovação no que concerne à temática do negro, revitalizou tal abordagem acenando para a extinção do regime escravocrata. Nesse ponto, o romance O Mulato representa uma denúncia: Aluísio Azevedo tenta expor as feridas de uma sociedade pouco sensível às transformações que se faziam acontecer.
Com Raimundo, personagem principal, Aluísio procura fazer não o resgate do “preto de alma branca”- ainda que incorporasse as qualidades de um branco, o personagem descobre-se mulato e vê que não apenas a negritude aparente na pele é responsável pela indiferença e frieza com que é tratado: a origem negra será o “muro” que o separará das fronteiras históricas e sociais, que o levarão a um caminho sem retorno -, mas a denúncia da chaga social que vivia o país. Ao sentir-se amaldiçoado pela palavra que justificaria seu passado (um mulato!), brotam em Raimundo o ódio, a vergonha, o ressentimento, a inveja, a tristeza e a maldade: “Pois então de nada lhe valia ter sido bem-educado e instruído; de nada lhe valia ser bom e honesto?”. O que aconteceu a Raimundo explicita-se, ainda, no texto de Adão Ventura: Carrego comigo / a sombra de longos muros tentando impedir / que meus pés cheguem ao final dos caminhos.
Em O Mulato, o processo de criação empregado por Aluísio Azevedo continua válido. Nossas diferenças sociais ainda estão à espreita de observadores que penetrem no poço social que ainda tem, tantas vezes, aprisionado o homem de ontem e de hoje.
À memória de meu pai, cuja cor da pele nunca se transformou numa faca que atingisse em cheio os nossos corações.
domingo, 20 de janeiro de 2008
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3 comentários:
yury:c.e.10 de maio turma 3004
esses textos, adorei.
e mostram que você é uma pessoa digna de cultura, que demonstra ter escrevendo.
passo a ser seu visitante diário
trate de escrever mais.heheheheh
bjos.
Excelente texto, gostei muito da análise feita, ela que nos ajuda a entender o preconceito presente em nossa sociedade e como a literatura retratou isso. Lê, sua análise não é só literária, é histórica, sociológica e antropológica também, parabéns, ficou ótima.
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