Sob o manto diáfano da fantasia, a nudez forte da verdade (Eça de Queirós).
O corpo desempenha papel de extrema importância e significação na passagem do homem pela Terra. Traço que o acompanha desde a criação do mundo, a nudez - o princípio da vida – acaba por ser responsável pelo elo característico da natureza humana: o nascimento e a morte. Todo homem nasce nu e ao morrer a nudez lhe confere o despojamento e então, tudo o que lhe revestiu o corpo durante a vida se detém frente à nudez da inexorabilidade da morte.
A passagem bíblica que narra o capítulo da Culpa Original esclarece a desobediência do homem e dá à nudez o caráter do pecado, da vergonha: o homem tem consciência de sua transgressão às leis divinas, esconde-se, ainda que não lhe tenha sido revelado por Deus que estava nu. Tomados pela consciência do pecado e punidos pela mão divina, o homem e a mulher tornaram-se conhecedores do bem e do mal, muniram-se de roupas, são expulsos do jardim do Éden e a partir daí as vestimentas e a nudez formarão o duplo antagônico que vai reger a questão do mito da nudez na história da humanidade.
A própria história de nossa colonização pode ser examinada como um enfrentamento de dois mundos: o mundo dos vestidos e o mundo dos desnudos, portugueses e índios experimentam a perplexidade mútuas, o que aos europeus pareceu causar maior espanto, aos índios imagina-se percebido como um acontecimento só assimilável em sua visão mítica do mundo.
Em muitas culturas ocidentais na atualidade, algumas partes do corpo como pés, mãos e rosto podem ficar descobertos, mas cobre-se o tronco. Peito, costas, ventres, órgãos sexuais (os sinalizadores da sobrevivência da espécie humana) são sempre vestidos e guardados. Em outras culturas, com seu código moral rigoroso, mulheres têm a obrigação de estarem sempre cobertas de preto, da cabeça aos pés.
A nudez durante o encontro sexual, durante o banho, nas praias de nudismo em nada aproxima o homem de sua condição natural, visto que é rigorosamente marcada por restrições territoriais. O oposto à nudez do nascimento, elemento universal, é a nudez institucionalizada: a nudez do strip – tease, que transforma o público, segundo Barthes, “em voyeurs obrigatórios e, assim contracenadores daquele código hiperlingüístico”.
A nudez é institucionalizada nos dias de Carnaval e, nas revistas masculinas virou marca registrada, exposta aos olhos de todos. Nos bailes de Carnaval, nos desfiles de escolas de samba, nos grandes clubes das cidades, parece estar substituindo as máscaras: os foliões se despem para vestirem a máscara da “sensualidade”, do “erotismo”, daquele tempo mítico de nossos antepassados indígenas. Nas últimas décadas a televisão passou a transmitir a nudez carnavalesca: ao trazer o nu para dentro de casa, o elemento natural desaparece e a nudez passa a ser aceita na moldura doméstica e assim, platéia e telespectador passam a redefini-la.
O nu aparece na literatura e na música como elemento de inspiração, seja na descrição diáfana dos românticos, seja na descrição erótica de contemporâneos, seja nas metáforas musicais de nossos compositores. José de Alencar, em um de seus romances indianistas, oferece-nos a descrição física da beleza indígena, como modelo de perfeição, numa visão de extremo lirismo: ao descrever, logo no segundo capítulo do romance Iracema, a beleza da índia tabajara, automaticamente remete o leitor à extraordinária virtude física que a personagem encerra.
Assim, o corpo traz, indelevelmente, sua marca de cultura. E o mito que ele encerra aponta para a multiplicidade, para a complexidade e desafia ao reencontrar a história da criação e a maneira como é conduzido através dos tempos.
A nudez em sua complexidade proporciona um rastreamento semântico de seus códigos e acaba por nos revelar as molduras de “sagrado” e “profano”: sagrado, do latim sacratu – aquilo que se sagrou ou que recebeu a consagração; que concerne às coisas divinas, à religião; aos ritos ou ao culto (...); e profano, também do latim profanu – definido como oposto ao respeito que se deve às coisas sagradas; não sagrado; leigo (...).
Hoje, no que diz respeito à nudez, transita-se no limite estreito entre os conceitos de certo e de errado, entre o sagrado e o profano, entre o bem e o mal. Vivemos numa demarcação estreita entre a nudez natural e a profana. E ainda que tenhamos uma aparente noção desta demarcação; ainda que conheçamos os cordões de isolamento, as proibições, os tabus que isolam tudo o que é sagrado e, portanto, só permitido a alguns (deuses, heróis, mitos, artistas) do que é comum e real a todos, a nudez nos irmana: nossa origem e nosso destino final neste mundo.
*Tomou-se, como ponto de partida, o filme “O HOMEM NU” (1997), de Hugo Carvana, baseado na novela de Fernando Sabino “A NUDEZ DA VERDADE”, a qual faz parte da trilogia de novelas do autor, “AQUI ESTAMOS TODOS NUS”.
5 comentários:
Muito interessante o texto sobre a nudez, Lê! Parabéns pelo blog!
Li um artigo sobre o assunto no site:
http://www.cdcc.sc.usp.br/ciencia/artigos/art_21/nudez.html
Muito bom também!
Beijo, querida! estarei por aqui sempre. Relacionei seu blog ao meu parole (www.proseverso.blogspot.com)
Gostei muito do comentário sobre a nudez, uma visão antropológica dos costumes e da visão de mundo que as pessoas tem e que vão muito além dos clichês de certo e errado, bem e mal, feio ou bonito que nossa sociedade covencionou rotular ao longo de sua história.
Lenise, acho que vc foi muito feliz no que escreveu ao quebrar alguns paradigmas do "politicamente correto".
Divino texto Lenise. Achei super interessante,além de informativo, a cultura mudou muito.
Parabéns, adorei o blog.
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